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segunda-feira, 6 de abril de 2015

Faraós negros – Um capítulo esquecido na história


Um capítulo esquecido da história fala dos faraós negros, tempo em que reis do interior da África conquistaram o Antigo Egito

No ano 730 a.c., um homem chamado Piye chegou à conclusão de que a única maneira de salvar o Egito de si mesmo era invadi-lo. E muito sangue iria correr antes de chegar o momento da redenção. “Preparem as melhores montarias de seus estábulos”, ordenou ele a seus comandantes. A magnífica civilização que construíra as grandes pirâmides havia perdido o rumo, destroçada por medíocres chefes guerreiros.
Durante duas décadas, Piye estivera à frente do próprio reino na Núbia, um trecho da África situado quase todo no atual Sudão. Mas ele também se via como o verdadeiro Senhor do Egito, o legítimo herdeiro das tradições espirituais mantidas por faraós, como Ramsés II e Tutmés III. Como Piye provavelmente jamais colocara de fato os pés no Baixo Egito, houve quem não levasse a sério suas reivindicações. Agora, contudo, Piye iria testemunhar com os próprios olhos a submissão do Egito decadente.
Suas tropas seguiram para o norte, navegando pelo rio Nilo. E desembarcaram em Tebas, capital do Alto Egito. Convencido de que havia uma maneira apropriada de travar guerras santas, Piye ordenou aos soldados que, antes do combate, se purificassem com um banho no Nilo, vestissem panos de qualidade e aspergissem sobre o corpo a água do templo em Karnak, um local santo para Amon, o deus solar com cabeça de carneiro, considerado por Piye como a sua divindade pessoal. Assim consagrados, o comandante e suas tropas passaram a enfrentar todos os exércitos que cruzavam pelo caminho.
No fim de uma campanha de um ano, todos os chefes guerreiros do Egito haviam capitulado – incluindo Tefnakht, o líder do delta, que enviou uma mensagem a Piye: “Seja clemente! Não posso contemplar o teu semblante nos dias de vergonha nem me erguer diante de tua chama, pois temo a tua grandeza”. Em troca da própria vida, os derrotados conclamaram Piye a adorar em seus templos, a ficar com suas jóias mais refulgentes e a apoderar-se de seus bons cavalos.
O conquistador não se fez de rogado. E então, diante de seus vassalos que tremiam de medo, o recém-sagrado Senhor das Duas Terras fez algo extraordinário: após embarcar seu exército e seu butim, içou velas rumo ao sul, navegou de volta para casa, na Núbia, e jamais voltou ao Egito.
Em 715 a.C., quando Piye morreu, encerrando um reinado de 35 anos, seus súditos atenderam a seu desejo e o enterraram em uma pirâmide de estilo egípcio, juntamente com quatro de seus amados cavalos. Piye foi o primeiro faraó a ser sepultado dessa maneira em mais de 500 anos. É uma pena, portanto, que nada do semblante literal desse grande núbio tenha sobrevivido. As imagens de Piye nos elaborados blocos de granito, conhecidos como estelas, e que registram sua conquista do Egito, há muito foram apagadas. Em um relevo no templo da capital núbia de Napata, restaram apenas as pernas de Piye. Só temos certeza de um único detalhe físico do faraó: a cor de sua pele, que era negra.
Piye foi o primeiro dos chamados “faraós negros” – uma série de soberanos núbios que reinaram sobre todo o Egito durante três quartos de século, constituindo a 25a dinastia. Graças a inscrições entalhadas em estelas tanto pelos núbios como por seus inimigos, podemos ter idéia da imensa área do continente controlada por esses governantes. Os faraós negros reunificaram um Egito fragmentado e marcaram sua paisagem com monumentos gloriosos, criando um império que se estendia desde a divisa meridional na atual Cartum, seguindo na direção norte, até o Mediterrâneo. Eram poderosos o bastante para enfrentar os sanguinolentos assírios, e talvez com isso tenham salvo a cidade de Jerusalém.
Nas últimas quatro décadas, os arqueólogos começaram a recuperar a história desse reino – e a aceitar que os faraós negros não tinham caído do céu. Em vez disso, haviam surgido de uma robusta civilização africana que florescera nas margens meridionais do Nilo durante 2,5 mil anos, remontando à primeira dinastia egípcia.
Atualmente, as pirâmides do Sudão – mais numerosas que as do Egito – são espetáculos assombrosos no deserto da Núbia. É possível perambular por elas sem nenhum temor, mesmo se estivermos desacompanhados, como se a região nada tivesse a ver com o genocídio no país, a crise dos refugiados em Darfur ou as conseqüências da guerra civil no sul. Enquanto cerca de mil quilômetros ao norte, no Cairo ou em Luxor, multidões de turistas curiosos desembarcam de um ônibus após outro, espremendo-se para ver e apreciar as maravilhas egípcias, as pouco visitadas pirâmides sudanesas de El Kurru, Nuri e Meroé se erguem serenamente em meio a uma paisagem árida e vazia que mal sugere que ali teve lugar próspera cultura da antiga Núbia.
Agora, contudo, nosso vago entendimento dessa civilização está mais uma vez ameaçado de mergulhar na obscuridade. O governo sudanês constrói uma usina hidrelétrica no rio Nilo, cerca de mil quilômetros acima da barragem de Assuã, erguida pelo Egito nos anos 1960 e que transformou grande parte da Baixa Núbia no leito do lago Nasser (chamado de lago Núbia, no Sudão). Até 2009, ficará pronta a enorme barragem de Merowe e um lago com 170 quilômetros de comprimento irá inundar as terras em torno da Quarta Catarata – assim como milhares de sítios arqueológicos ainda inexplorados. Nos últimos nove anos, os arqueólogos acorreram desesperados à região, realizando escavações a toque de caixa antes que outro repositório de história núbia tenha o mesmo destino da Atlântida.
O mundo da antiguidade não conhecia o racismo. Na época em que Piye realizou sua histórica conquista, o fato de sua pele ser escura era irrelevante. Obras de arte da Antiguidade – do Egito, da Grécia ou de Roma – revelam clara percepção das características raciais e dos tons de pele, mas há poucos indícios de que a cútis mais escura era vista como sinal de inferioridade. Somente quando as potências coloniais ocuparam a África, no século 19, os estudiosos ocidentais passaram a atribuir importância, de modo pejorativo, à cor dos núbios.
Exploradores que alcançaram o trecho central do rio Nilo relataram entusiasmados a descoberta de templos e pirâmides elegantes – as ruínas da antiga civilização de Cuch. Alguns, como o médico italiano Giuseppe Ferlini – que demoliu o topo de pelo menos uma pirâmide núbia, levando outros a fazer o mesmo –, eram movidos pela esperança de achar tesouros. O arqueólogo prussiano Richard Lepsius tinha intenções mais sérias, mas também provocou danos ao concluir que os cuchitas “pertenciam à raça caucasiana”.
Até mesmo o famoso egiptólogo de Harvard George Reisner – cujas descobertas no período entre 1916 e 1919 proporcionaram os primeiros indícios de que soberanos núbios haviam governado o Egito – maculou os próprios achados ao insistir que os africanos negros jamais poderiam ter construído aqueles monumentos que estava trazendo à luz. Os reis núbios, incluindo Piye, seriam líbios-egípcios de pele clara que tinham como súditos os africanos negros primitivos. O fato de seu período de grandeza ter sido tão passageiro, sugeriu ele, devia ser conseqüência dos casamentos que esses mesmos líderes realizaram com “elementos negróides”.
Ao longo das décadas, muitos historiadores permaneceram indecisos: os faraós cuchitas eram tanto “brancos” e bem-sucedidos como “negros”, e sua civilização não passava de uma versão piorada da legítima cultura egípcia. Em um livro publicado em 1942, When Egypt Ruled the East (“Quando o Egito dominou o Oriente”), os egiptólogos Keith Seele e George Steindorff resumiram a dinastia dos faraós núbios e os triunfos de Piye em apenas três frases. A última delas dizia: “Mas esse domínio não durou muito”.
A negligência em relação à história núbia refletia não só a tendenciosa visão de mundo da época como também uma fascinação pouco crítica pelas realizações egípcias – e uma ignorância absoluta do passado da África. “Quando fui pela primeira vez ao Sudão”, recorda o arqueólogo suíço Charles Bonnet, “as pessoas comentaram: ‘Mas você é louco! Não há nada de interesse histórico ali! Está tudo no Egito!’ ”
Isso ocorreu há apenas 44 anos. Foram os artefatos recuperados durante a construção da usina de Assuã, nos anos 1960, que começaram a mudar essa visão. Em 2003, décadas de escavações realizadas por Charles Bonnet nas cercanias da Terceira Catarata do Nilo, no povoado abandonado de Kerma, obtiveram reconhecimento internacional com a descoberta de sete grandes estátuas de pedra representando faraós núbios. Muito antes disso, contudo, os esforços de Bonnet haviam revelado um centro urbano mais antigo, densamente povoado, que controlava campos férteis e imensos rebanhos e que durante muito tempo prosperou com o comércio de ouro, ébano e marfim. “Era um reino separado do Egito, e original, com técnicas próprias de construção e costumes funerários”, diz Bonnet. Essa poderosa dinastia surgiu durante a decadência do Médio Império do Egito, por volta de 1785 a.C. E, em 1500 a.C., o Império Núbio havia empurrado suas fronteiras para um ponto entre a Segunda e a Quinta Cataratas.
O retorno a essa era dourada no deserto africano pouco contribui em favor da campanha dos egiptólogos afrocêntricos para quem todos os antigos egípcios, de Tutankhamon a Cleópatra, eram negros. Mesmo assim, a saga dos núbios comprova que uma civilização do interior da África não só prosperou mas também, ainda que por pouco tempo, foi predominante, mesclandose e por vezes casando-se com seus vizinhos egípcios ao norte. (A própria avó de Tutankhamon, a rainha Tiye da 18a dinastia, é considerada por alguns como descendente de núbios.)
Os egípcios não viam com bons olhos a existência de um vizinho tão poderoso ao sul, sobretudo porque dependiam das minas de ouro da Núbia como fonte de financiamento de seu domínio no Oriente Próximo. Por isso, os faraós da 18a dinastia (1539–1292 a.C.) mobilizaram seus exércitos para conquistar a Núbia e erguer guarnições militares ao longo do Nilo. Nomearam chefes locais como administradores e permitiram que os filhos dos núbios mais favorecidos estudassem em Tebas. Subjugada, a elite núbia adotou os costumes culturais e espirituais do Egito – adorando suas divindades, em especial Amon, comunicando-se na língua de seus conquistadores, adotando práticas funerárias e, mais tarde, a própria construção de pirâmides. Podese dizer que os núbios foram o primeiro povo a ser tomado por uma onda de “egitomania”.
Os egiptólogos do fim do século 19 e início do 20 interpretaram isso como sinal de fraqueza. Mas estavam equivocados: os núbios tinham talento para interpretar as tendências geopolíticas. No fim do século 8 a.C., o Egito estava dilacerado por facções, com a região sob o controle de chefes líbios. Uma vez consolidadas no poder, tais facções começavam a desestimular a devoção a Amon, e os sacerdotes de Karnak passaram a temer por um futuro ímpio. Quem tinha condições para fazer com que o Egito recuperasse seu estado anterior de poderio e santidade?
Olhando para o sul, os sacerdotes egípcios encontraram a resposta – um povo que, sem jamais ter cruzado suas fronteiras, havia conservado as tradições espirituais do Egito. Naquela altura, como diz o arqueólogo Timothy Kendall, os núbios haviam se tornado “mais católicos que o papa”.
Sob o domínio núbio, o Egito voltou a ser Egito. Quando Piye morreu, em 715, seu irmão Shabaka consolidou a 25a dinastia ao estabelecer- se na capital egípcia de Mênfis. Assim como o irmão, Shabaka identificava-se com as antigas práticas faraônicas, adotando como soberano o nome do faraó Pepi II, da 6a dinastia, tal como Piye adotara o de Tutmés III. E, em vez de mandar executar seus inimigos, Shabaka colocou-os para construir diques que protegessem as aldeias egípcias das inundações do Nilo.
Tebas e o templo de Luxor ganharam novos projetos arquitetônicos. Em Karnak, o faraó erigiu uma estátua de granito rosado de si mesmo envergando a coroa cuchita com o duplo uraeus – as serpentes que indicam sua legitimidade de Senhor das Duas Terras, o Baixo e o Alto Egito. Shabaka deixou claro aos egípcios que os núbios não tinham a menor intenção de ir embora.
A leste, os assírios estavam consolidando seu próprio império. Em 701 a.C., quando suas tropas marcharam sobre a Judéia, no atual território de Israel, os núbios decidiram conter aquele avanço. Os dois exércitos chocaram-se na cidade de Eltekeh. E, embora o imperador assírio, Senaqueribe, tivesse se vangloriado da vitória, um jovem príncipe núbio, com cerca de 20 anos, filho do faraó Piye, sobreviveu. O fato de que os assírios, que costumavam não poupar nenhum de seus inimigos, terem deixado escapar o príncipe indica que talvez a vitória não tenha sido total.
Seja como for, quando os assírios deixaram Eltekeh e se concentraram diante das portas de Jerusalém, o líder da cidade, Ezequias, contava com a ajuda de seus aliados egípcios. Cientes disso, os assírios não puderam conter a provocação, imortalizada no Livro II de Reis, do Antigo Testamento: “Confias no apoio do Egito, esse caniço quebrado, que penetra e fura a mão de quem nele se apóia; pois não passa disso o Faraó, rei do Egito, para todos os que nele confiam” (18:21).

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