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terça-feira, 29 de setembro de 2015

Uma fonte nova e surpreendente do código da vida


Genes, assim como pessoas, têm famílias — linhagens que se estendem através do tempo desde um dos membros fundadores. Esse ancestral se multiplicou e propagou, passando por transformações a cada nova reprodução.

Durante a maior parte dos últimos 40 anos, cientistas acreditaram que essa era a principal maneira como novos genes nasciam: eles simplesmente se originavam de cópias de genes já existentes. A versão antiga continuava desempenhando seu trabalho e a nova cópia ficava livre para evoluir funções inéditas.

Certos genes, no entanto, parecem desafiar essa história de gênese. Eles não têm parentes conhecidos, e não se parecem com qualquer outro gene. Eles são o equivalente molecular de uma misteriosa e assustadora criatura descoberta nas entranhas de uma remota floresta tropical; um enigma biológico aparentemente não relacionado com qualquer outra coisa na Terra.

O mistério sobre a origem desses genes órfãos intrigou cientistas durante décadas. Nos últimos anos, porém, uma explicação antes considerada herética vem ganhando impulso rapidamente: que muitos desses órfãos surgiram do chamado DNA “lixo”, ou DNA não codificante; os misteriosos filamentos de DNA entre genes. “A função gênica de alguma forma passa a existir”, resumiu David Begun, biólogo da Universidade da Califórnia em Davis.

No passado, essa metamorfose era considerada impossível, mas um crescente número de exemplos em organismos que vão de leveduras a moscas, camundongos e humanos convenceu a maior parte dos cientistas desse campo de que existem esses genes, os quais passaram a ser identificados com a expressão latina “de novo”.

Alguns pesquisadores acham que genes de novo até podem ser comuns. No mês passado, uma pesquisa apresentada na Sociedade de Biologia Molecular e Evolução, em Viena, na Áustria, identificou 600 genes humanos potencialmente com essa característica. “Supostamente, a existência de genes de novo era uma coisa rara”, observou Mar Albà, bióloga evolutiva no Instituto de Pesquisa do Hospital del Mar, em Barcelona, na Espanha, que apresentou o estudo. “Mas as pessoas começaram a vê-la mais e mais”.

Pesquisadores estão começando a entender que esses genes parecem compor uma parte significativa do genoma, mas até agora cientistas têm apenas uma vaga noção de quantos existem ou do que eles fazem. Além disso, mutações nesses genes podem ser gatilhos de falhas catastróficas. “Parece que esses novos genes muitas vezes são os mais importantes”, argumentou Erich Bornberg-Bauer, pesquisador em bioinformática da Universidade de Münster, na Alemanha.

Caçada aos órfãos

O modelo padrão de duplicação gênica explica muitas das milhares de famílias conhecidas de genes, mas ele tem limitações, pois implica que a maior parte da inovação teria ocorrido nos primórdios da história da vida. De acordo com esse modelo, há 3,5 bilhões de anos as moléculas biológicas mais primitivas teriam criado um conjunto de blocos de construção genética. Depois disso, cada nova repetição da vida ficaria limitada a ajustar esses blocos.

Mas, se o conjunto de ferramentas da vida é tão limitado, como a evolução pôde gerar a vasta coleção de animais que vemos hoje na Terra? “Se [componentes] novos só [derivam] de ‘peças’ velhas, não seríamos capazes de explicar mudanças fundamentais no desenvolvimento”, salientou Bornberg-Bauer.

A primeira evidência de que um rigoroso modelo de duplicação talvez não seja suficiente surgiu na década de 90, quando as tecnologias de sequenciamento de DNA se estabeleceram. Pesquisadores que analisavam o genoma da levedura constataram que um terço dos genes do organismo não tinha semelhança alguma com genes conhecidos em outros organismos. Na época, muitos cientistas presumiram que esses órfãos pertenciam a famílias que simplesmente ainda não tinham sido descobertas. Mas essa suposição não provou ser verdadeira. Ao longo da última década, cientistas sequenciaram o DNA de milhares de organismos distintos; no entanto, muitos genes órfãos continuam desafiando uma classificação. Suas origens permanecem um mistério.

Em 2006, Begun encontrou algumas das primeiras evidências de que genes de fato poderiam nascer de DNA não codificante. Ele comparou sequências gênicas da mosca-das-frutas padrão de laboratório, Drosophila melanogaster, com outras espécies congêneres estreitamente aparentadas. As diferentes moscas compartilham a vasta maioria de seus genomas. Mas Begun e seus colaboradores encontraram vários genes que só estavam presentes em uma ou duas espécies e não nas outras, o que sugeriu que esses genes não descendiam de ancestrais existentes. Em vez disso, Begun propôs que sequências randômicas de DNA “lixo” (não codificante) no genoma da mosca-das-frutas poderiam se transmutar em genes funcionais.

No entanto, criar um gene a partir de uma sequência randômica de DNA parece tão improvável quanto despejar no chão um frasco cheio de pedrinhas do jogoScrabble e esperar que as letras formem uma frase coerente. O DNA “lixo” precisa acumular mutações que lhe permitam ser lidas pela célula ou convertido em ácido ribonucleico (RNA, na sigla em inglês), assim como componentes regulatórios que determinam quando e onde o gene deve ser ativo. E, assim como uma frase, esse gene tem de ter um começo e um fim; ou seja, códigos curtos que sinalizam seu início e fim.

Além disso, o RNA ou a proteína produzida pelo gene precisam ser úteis. Genes recém-nascidos poderiam revelar-se tóxicos, produzindo proteínas nocivas, como aquelas que se aglutinam nos cérebros de pacientes com Alzheimer. “Proteínas têm uma forte tendência para se desenrolarem e gerarem desnaturação”, explicou Joanna Masel, bióloga da Universidade do Arizona, em Tucson. “É difícil ver como obter uma nova proteína de sequências randômicas quando se espera que elas causem tantos problemas”. Masel está estudando meios com que a evolução poderia contornar esse problema.

Outro desafio para a hipótese de Begun foi que a dificuldade para distinguir um gene de novo verdadeiro de outro que mudou drasticamente em relação ao original de seus ancestrais. (A dificuldade de identificar os verdadeiros genes de novo continua sendo uma fonte de discórdia no campo.)

Há 10 anos, Diethard Tautz, biólogo do Instituto Max Planck para Biologia Evolutiva, na Alemanha, foi um de muitos pesquisadores céticos em relação à ideia de Begun. Tautz havia encontrado explicações alternativas para genes órfãos. Alguns genes misteriosos haviam evoluído muito rapidamente, deixando sua ancestralidade irreconhecível. Outros foram criados através da recombinação de fragmentos de genes.

Então sua equipe se deparou com o gene Pldi, batizado em homenagem ao jogador de futebol alemão Lukas Podolski. A sequência está presente em camundongos, ratazanas e humanos. Nas duas últimas espécies, ele permanece em silêncio, o que significa que não é convertido em RNA ou proteína. O DNA só é ativo ou transcrito em RNA em camundongos, nos quais parece ser importante: animais desprovidos dele têm espermatozoides mais lentos e testículos menores.

Os pesquisadores conseguiram rastrear a série de mutações que converteram o pedaço silencioso de DNA não codificante em um gene ativo. Esse trabalho mostrou que o novo gene de fato é um de novo verdadeiro e descartou a alternativa de que ele pertenceria a uma família de genes que simplesmente evoluiu até um ponto além do reconhecimento. “Foi aí que pensei ‘ok’, isso tem de ser possível”, admitiu Tautz.

Uma onda de genes inéditos

Agora cientistas já catalogaram diversos exemplos claros de genes de novo: um na levedura que determina se ela se reproduzirá sexuada ou assexuadamente, outro que se tornou essencial para o voo em moscas e outros insetos de duas asas, e alguns que encontrados somente em humanos, mas cujas funções permanecem provocadoramente nebulosas.

Na conferência da Sociedade de Biologia Molecular e Evolução, em agosto, Albà e seus colaboradores identificaram centenas de supostos genes de novo em humanos e chimpanzés — dez vezes mais que estudos anteriores — por meio de poderosas novas técnicas para análise de RNA. Dos 600 genes específicos de humanos que a equipe de Albà encontrou, 80% são inteiramente novos; ou seja, nunca tinham sido identificados antes.

Infelizmente, decifrar a função de genes de novo é muito mais difícil do que identificá-los. Mas pelo menos alguns deles não estão inativos, fazendo o equivalente genético a “girar seus polegares”. Evidências sugerem que uma parcela desses genes torna-se rapidamente essencial. Cerca de 20% de genes novos em moscas-das-frutas parecem ser necessários para a sobrevivência. E muitos outros mostram sinais de seleção natural, indício de que estão fazendo algo útil pelo organismo.

Em humanos, pelo menos um gene de novo está ativo no cérebro, o que leva alguns cientistas a especular que genes desse tipo podem ter ajudado a impulsionar a evolução do órgão. Outros, quando mutados, são associados ao câncer, sugerindo que eles têm uma função importante na célula. “O fato de que ser desregulado pode ter consequências tão devastadoras implica que a função normal é importante ou poderosa”, concluiu Aoife McLysaght, geneticista da Trinity College, em Dublin, que identificou os primeiros genes de novo humanos.

Proteínas promíscuas

Genes de novo também são parte de uma mudança maior, que envolve nossa concepção do aspecto e funcionamento de proteínas. Esses genes muitas vezes são curtos e produzem proteínas pequenas. Em vez de se emaranharem em uma estrutura precisa – conforme a noção convencional de como uma proteína se comporta ­–, proteínas de novo têm uma arquitetura mais desordenada. Isso as torna um pouco “frouxas”, ou flexíveis, o que lhes permite se ligarem a uma gama mais ampla de moléculas. No jargão bioquímico, essas jovens proteínas são promíscuas.

Cientistas ainda não sabem muito sobre como essas proteínas mais curtas se comportam, em grande parte porque as tecnologias de triagem padrão tendem a ignorá-las. A maioria dos métodos para detecção de genes e suas proteínas correspondentes seleciona sequências longas que têm alguma similaridade com genes existentes. “É fácil não notá-las”, concordou Begun.

Mas isso está começando a mudar. À medida que cientistas reconhecem a importância de proteínas mais curtas, eles estão adotando novas tecnologias para descobrir genes. Como resultado, o número de genes de novo pode até “explodir”. “Não sabemos que coisas genes mais curtos fazem”, admitiu Masel. “Temos muito a aprender sobre o seu papel em biologia”.

Cientistas também querem entender como genes de novo são integrados na complexa rede de reações que impulsionam a célula, um problema particularmente intrigante. É como se uma bicicleta desenvolvesse espontaneamente uma peça nova e a incorporasse rapidamente em seu mecanismo, mesmo funcionando bem sem ela. “A questão é fascinante, mas completamente desconhecida”, resumiu Begun.

Um gene especificamente humano, chamado ESRG, ilustra esse mistério particularmente bem. Parte da sequência é encontrada em macacos e outros primatas. Mas ele só é ativo em humanos, onde é essencial para a manutenção das primeiras células-tronco embrionárias. E, no entanto, macacos e chimpanzés são perfeitamente aparelhados para produzir células-tronco embrionárias sem ele. “É um gene especificamente humano desempenhando uma função que tem de pré-datar o gene, pois outros organismos também têm essas células-tronco”, ponderou McLysaght.

“Como um gene novo, inédito, se torna funcional? Como ele é incorporado a processos celulares reais?”, questionou a geneticista. “Para mim, essa é a questão mais importante no momento”.

Revista Quanta (leia a matéria original aqui, em inglês).

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