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quarta-feira, 6 de maio de 2015

'Estamos chegando lá, mas por que queremos recriar um mamute?'


Corpos preservados por milênios no gelo siberiano podem permitir que algo até então limitado à ficção científica se torne realidade: mamutes vivos, caminhando entre nós. Em 24 de abril, uma pesquisa publicada na revista científica “Current Biology” trouxe um avanço fundamental, o sequenciamento genético do animal, extinto há milênios. Com isso, cientistas podem teoricamente alterar o DNA de um elefante para ficar igual ao de um mamute e inseri-lo no óvulo de uma elefanta. A "mãe de aluguel" gestaria o embrião geneticamente alterado e, com sorte, daria à luz um animal que seria o mais próximo possível do mamute. Algo na linha do filme "Jurassic Park", porém, não está no horizonte, afirma a paleogeneticista Beth Shapiro.

Autora do livro “How to clone a mammoth” (“Como clonar um mamute”, em tradução livre), a pesquisadora derruba mitos a respeito do processo e levanta questões éticas sobre o que fazer com este novo-velho animal. Apelidada de “de-extinção”, a técnica pode ser aplicada também para modificar características de um animal já existente ou trazer de volta ao mundo um pouco de antigos ambientes.

A questão da clonagem de mamutes a partir do DNA preservado no gelo é envolvida em mitos. Para começar, não seria bem uma clonagem, certo?

Clonagem é a inserção de uma célula viva dentro de um óvulo. Por razões óbvias, não temos uma célula viva de mamute. O que seria feito é a edição de uma célula de um elefante para colocar genes de mamute, e não uma clonagem. Mas o genoma seria mais parecido com o de um mamute. Podemos fazer isso com técnicas de edição genética.

Se o mamute vai ser gestado dentro do útero de uma elefanta, qual seria o impacto? Algo parecido já foi feito antes?

Sim, algumas vezes. Já fizemos vacas dar a luz a espécies ameaçadas de extinção. Tentamos isso com um bucardo (um tipo de cabra selvagem europeia). Sabemos que pode funcionar, mas não sabemos se vai funcionar no caso do mamute. Não funcionou com o bucardo, mas tentamos.

Em quantos anos seria possível fazer isso

Depende do que estamos dispostos a aceitar. Se quisermos algo que seja 100% mamute, provavelmente nunca. Se for um elefante com 14 genes de mamute, aí já é possível pensar em fazer. O primeiro teste desta tecnologia provavelmente vai ser com uma ave, porque é mais fácil de controlar, já que o processo de gestação ocorre fora do útero. A galinha é uma boa opção como teste, porque estudamos muito bem o seu código genético.

Mas edição de DNA ainda é uma técnica nova. Já é possível usá-la na escala necessária para editar o DNA de um elefante para que ele pareça com o de um mamute?

Depende. O DNA de um mamute para o de um elefante asiático difere em cerca de 1 milhão de genes. Para alterar o genoma em todos eles, não temos ainda a tecnologia, mas ela está avançando. Estamos chegando lá. Mas a questão é, por queremos fazer isso? Por que trazer um mamute de volta à vida? A resposta para esta questão é que vai dizer se é ou não possível fazer o que queremos

Como assim?

Mesmo se fôssemos fazer as cerca de um milhão de alterações no genoma de um elefante, para que ele se torne um mamute, este DNA alterado seria colocado dentro de uma célula de elefante, no óvulo de uma elefanta, para ser gestado e receber todos os hormônios que um bebê de elefante recebe no útero. Se este “mamute” nascer, vai ser criado como um elefante, em uma sociedade de elefantes. É difícil dizer se o animal seria um elefante ou um mamute. Nós, seres humanos, somos muito mais que nosso código genético. Se fôssemos só nosso DNA, os gêmeos idênticos agiriam da mesma forma, pensariam da mesma forma e se pareceriam por toda a vida. Mas isso não acontece. Somos um produto do nosso sequenciamento genético e do ambiente à nossa volta. Então, mesmo que a tecnologia permitisse algo assim, e ainda não permite, nós nunca seremos capazes de trazer de volta à vida um animal que seja 100% mamute. Mas se não nos importarmos de criar um híbrido, como por exemplo um elefante capaz de sobreviver em climas frios como um mamute, então não precisamos fazer 1 milhão de alterações no DNA. Só precisaríamos mudar os genes necessários.

E o argumento é que isto sim seria o grande avanço?

Sim. Sabemos que ao introduzir animais herbívoros em habitats dos quais eles foram eliminados ­— já fizemos isso com bisões e cavalos — eles alteram este ambiente e recriam, por exemplo, os prados que existiam ali. Eles pisam no solo, adubam, espalham sementes, e isso faz os prados renascerem. Se reintroduzirmos o mamute de volta à Sibéria, ele poderia recriar o habitat que existia ali há milênios. Outra razão para fazer essa maluquice de recriar os mamutes seria... para salvar os elefantes. Eles são uma espécie ameaçada de extinção e o local onde vivem está em risco de desaparecer por conta da ação do homem. E se usarmos esta tecnologia para criar um tipo de elefante capaz de viver em terras mais ao norte, mais frias, onde há menos riscos e menos interferência do homem? Ou seja, podemos editar um elefante para garantir sua sobrevivência.

O que você está descrevendo não me parece muito diferente dos cruzamentos seletivos.

Exatamente. Mas estaríamos utilizando uma nova tecnologia, que é possivelmente muito mais rápida que o cruzamento seletivo, algo que fazemos há mais de 3 mil anos e que é responsável por criar, entre outras coisas, o cão doméstico. É o próximo passo. Mas há uma questão ética que precisa ser discutida.

Qual seria ela?

Atualmente não temos como atender às necessidades de um elefante em cativeiro. Elefantes vivendo em cativeiro não são felizes. Eles ficam doentes, têm dificuldade para se reproduzir. Se têm filhotes, eles muitas vezes os machucam ou matam. Até termos condições de atender às necessidades deles, não deveríamos tê-los em cativeiro e muito menos realizar experiências com eles.

Quais as maiores questões envolvendo a de-extinção dos mamutes ou até de outros animais?

Bem, para cada espécie há uma questão ética diferente. O dodô, por exemplo, só existia nas Ilhas Maurício, e foi extinto apenas 25 anos após ser descoberto. E não foi porque o comemos. Na verdade, marinheiros holandeses e portugueses disseram que o gosto deles era péssimo. O que aconteceu é que nós trouxemos ratos, porcos, cachorros e cobras para as ilhas. Como o dodô se reproduzia colocando um único ovo sem proteção sobre o solo, os ovos de dodô viraram uma refeição fácil para estes animais. Ou seja, até nós conseguirmos tirar das Ilhas Maurício estes animais que introduzimos, não adianta nada ressuscitar o dodô. Eles serão extintos de novo. E tenho uma forte objeção ética a trazer estes animais de volta à vida e colocar em um zoológico.

Um mamute poderia teoricamente viver em seu habitat natural?

Acredito que sim. Na Sibéria não tem muita gente e acho que as pessoas gostariam de ver estes animais caminhando por lá. O mamute é uma das poucas espécies extintas que podemos reintroduzir em seu habitat sem grandes problemas.

Mencionamos dodôs e mamutes, mas há uma infinidade de espécies candidatas à de-extinção. Há alguma mais apta que o mamute para ser alvo de um experimento desses?

Sim. Temos uma espécie de ratos-cangurus, extinta de parte do oeste dos Estados Unidos. Por serem ratos, uma raça muito usada em experimentos de laboratório, sabemos muito de seu DNA. Mas a melhor forma de utilizar esta tecnologia não é trazer animais de volta à vida, mas inserir características destes animais extintos em já existentes. Assim podemos preservar a biodiversidade.

Então não seria o caso de criar uma espécie de banco de dados com o DNA de espécies extintas ou em risco de extinção?

Sim, isso existe. É o Zoológico Congelado, em São Diego. Há duas décadas ele vem colecionando o DNA de espécies ameaçadas ou já extintas. Assim, quando a tecnologia chegar, vamos ter em mãos o genoma completo do animal, ao invés de algo fragmentado, como é o caso do DNA do mamute

Algo como "Jurassic Park" é impossível, certo?

Não há a menor chance de acontecer. Não temos como extrair o DNA de fósseis porque eles são essencialmente pedra. Além do mais, a ideia é bem assustadora. Vimos o que vai acontecer. Estamos indo para o quarto filme, e todos mostrando como isso seria uma péssima ideia.
O GLOBO

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